quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Pieguice

Observando as publicações do facebook, sinto que algo me aborrece há algum tempo. Fui deixando esse sentimento crescer p entender do que se tratava... E descobri... A maioria absoluta das publicações gira em torno de uma só palavra: pieguice. E uma das coisas q mais me incomoda no mundo é a pieguice. Quando  é usada em nome da boa escrita, me irrita mais ainda: palavras fáceis, “lições” de moral e de vida, supostas grandes descobertas do bem viver... Nossa... Fazem-me mal. Poucas são as publicações que me emocionam. Isso porque considero as palavras tão sagradas que a frase de Virginia Wolf tornou-se uma das minhas de cabeceira: “Devemos lapidar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro do nosso pensamento.”  Lendo a frase,  as palavras fáceis, as pretensas descobertas da autoajuda parecem uma afronta à nossa escritora.
O que me remete mais uma vez à psicanálise, culpada de tamanho mal estar diante da pieguice no mundo da escrita. A palavra se torna sagrada para o processo analítico por ser o único acesso ao inconsciente. E por isso, para usá-la, tem q haver sentido, ela tem q trazer a poesia da dor, a genuinidade da descoberta, a nem sempre benvinda claridade que destaca o pior de quem somos nós. Sendo assim, o respeito pelas palavras só acontece quando a verdade emana junto a elas. Senão, para mim, não vale. Fica chato. Viagem a lugar que já conheço. Cópia de best-seller ruim.
As palavras deveriam conter os segredos desvendados, revelando os grandes insights do psiquismo. Se vierem em forma de poesia, melhor ainda. Viajar nas palavras de Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana ou Martha Medeiros, nossa poetiza do cotidiano, traz a sensação de viagem a lugares novos, com todas as nuances que cada ponto e vírgula nos apresentam. Ler suas palavras nos leva de volta ao que já conhecíamos e não sabíamos que conhecíamos. Ler uma poesia ou uma frase desses escritores traz a mesma sensação do analisado no divã. “Ah, era isso? Eu já sabia... Mas, agora parece tão mais lindo e mais claro!”  E a partir daquele instante, torna-se libertador. E te leva de volta à Paris. Mesmo que já a conheça. Só que a partir daquele momento a Torre Eiffel parece brilhar mais. Apenas porque a vemos sob o ângulo da verdade. Nossa verdade.
Mas, verdades são pessoais. Cada um traz a sua e morre por ela. Queria vibrar com a pieguice. Eu seria mais feliz. Mas, escolhi os caminhos mais difíceis. O das palavras corretas, aquelas que têm que se tornar o invólucro do meu pensamento. E para que? Para ficar mais só, com certeza. O caminho da pieguice é o caminho da maioria. E cá estou eu, sozinha. De novo.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A criança que desejamos

Observar a criança de hoje me causa inquietação: suas atitudes, seu querer exacerbado, suas dificuldades ao se relacionar com o outro, sua dificuldade em atender às solicitações do mundo que a cerca; tudo na criança de hoje parece chamar a atenção.
Seus “excessos” encontram-se mais do que nunca superexpostos. Pais e mães declaram-se incompetentes para lidar com a “falta de limites” de seus filhos. Professores se veem às voltas com reclamações relacionadas ao desaparecimento de certa “educação”, que, supostamente deveria ficar a cargo da família e não da escola.
“Crianças-problema” tornaram-se frequentes nos consultórios. E o que não faltam são supostos “diagnósticos” que rotulam, mas não se mostram tão eficazes para o entendimento da situação. E a criança submete-se, mais do que nunca, aos saberes de “especialistas”: psicopedagogos, fonoaudiólogos, neurologistas, psiquiatras.
No episódio ocorrido em junho de 2011 (Revista Veja Rio, junho/2011) no Colégio São Bento, no Rio de Janeiro, um menino de seis anos foi publicamente humilhado e jogado ao chão, tornando-se vítima de violência física na hora do recreio. O agressor era um adolescente de quatorze anos. A própria instituição, famosa pelas punições exemplares, impôs-lhe uma pena de suspensão por um dia, considerada um desrespeito pela família. Por mais que desconheçamos o que realmente ocorreu naquele dia, a escola demostrou sinais claros de não saber lidar com essa nova modalidade de violência.
Em recente entrevista à Revista Veja Rio (1/06/2011), Thor Batista, filho do magnata Eike Batista, declara que nunca leu um livro inteiro e que malha três horas por dia. Alçado ao Olimpo social instantaneamente por conta da fortuna que herdará do pai, o rapaz não se envergonha em declarar que cultura não é o seu forte.
Os últimos conflitos do início do mês de agosto em Londres (Paperblog, agosto/2011) trazem uma ideia interessante acerca de como o consumismo da sociedade contemporânea pode contribuir para a construção subjetiva de seus sujeitos. Foi possível assistir a episódios de violência urbana e muitos confrontos entre a polícia e grupos de jovens. Eles incendiaram carros, edifícios e saquearam lojas em várias zonas da cidade. Estes grupos de jovens, muitos de caras tapadas e vestidos de negro são oriundos dos bairros de habitação social de Londres, locais economicamente menos privilegiados da cidade.
Ao comentar o episódio, numa entrevista ao jornal O Globo, Zygmunt Bauman, considerado o mais importante sociólogo vivo da atualidade, considera que os ataques não caracterizaram uma tentativa de rebeldia contra o consumismo, mas sim, “uma explosão de frustração acumulada” (Jornal O Globo, 2011). Para o sociólogo, trata-se do sonho dos menos favorecidos de consumir o que os mais ricos consomem.
A transformação da era industrial para a era da tecnologia trouxe o ritmo dos video clips, o acesso às redes sociais que garante a todos os sonhados quinze minutos de fama, o uso contínuo dos torpedos para a comunicação, a rapidez da mídia e o poder de compra com apenas “um clique”; toda essa parafernália parece traduzir uma nova forma de existência para os jovens.
 E as crianças não estão distanciadas dessa nova promessa de gozo, uma vez que também a elas está garantida a inserção nessa nova realidade através dos aparelhos modernos. Não é incomum vermos crianças de sete anos ganharem de presente aparelhos moderníssimos, um ingresso ao “mundo adulto” frequentado pelos pais.
É comum observarmos na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, os chamados “novos ricos” usufruindo apenas de um tipo de lazer: comprar. Famílias inteiras frequentam shopping centers, lojas de decoração e espaços gourmet e usufruem de suas ofertas comprando e consumindo “desejos”.
Afinal, já se foi o tempo em que criança “não tinha querer”. Hoje ela quer. E quer muito. O problema é que, muitas vezes, não sabe o que quer. E aí começa a querer tudo. Filhote do capitalismo consumista, a criança nos dias de hoje revela-se como representante legítima desse tipo de organização social.
Diante dessa nova criança, podemos pensar que o querer tudo significa não conseguir perder nada, ou ainda, significa não saber o que se quer. E diante de uma impossibilidade de escolha, o tudo querer se perde nas infinitas opções que a vida contemporânea oferece.
A mudança de lugar da criança na família traz para os adultos uma nova figura que outrora desconsiderada em suas especificidades, hoje é coroada e ocupa um lugar nuclear e, mais do que nunca, se mostra mais insatisfeita, causando-nos enorme perplexidade. Escola e família parecem não saber o que fazer e os desejos onipotentes da infância parecem encontrar parceria perfeita com a necessidade de venda do sistema social ao qual estamos submetidos atualmente.
Anika Lemaire (1977) afirma que a criança sofre a sociedade, sua cultura, sua organização e sua linguagem. Ela não dispõe de alternativa a não ser submeter-se às suas leis ou  reduzir-se a nada. Só nos tornamos sujeitos de nossas vidas se entrarmos no circuito social e se dele recebermos as regras.
Mas, as regras desse social parecem ter sofrido mudanças bastante significativas e, ao abordar a questão específica dos adolescentes, Luciana Coutinho (Revista Estilos da clínica, vol.14, no.27, São Paulo, dez/2009) levanta um ponto importante que compõe uma das ideias do presente estudo:
“Trata-se de uma ausência de ideais culturais ou da presença de um ideal cultural tirânico, que não dá lugar ao sujeito nem ao desejo, mas sim a um gozo mortífero que é prometido a todo tempo junto com a promessa de uma realização possível do ideal?” (Coutinho, 2009).
Do universo paralelo de Thor ao bulllying nas escolas, passando pelo equívoco das figuras parentais, pois também se submetem às regras do consumo, não é possível deixar de pensar que alguma coisa está errada. Qual será a noção de cidadania dos nossos jovens e como será o convívio social futuro dessa geração?
Como professora, penso que todos na área de educação deveriam, sob a luz da psicanálise, pensar na estruturação psíquica de seus pequenos. O olhar diferenciado dirigido ao cotidiano da sala de aula se estendeu aos encontros fortuitos nos shoppings centers onde me foi possível observar que o lazer das crianças se resumia a esse espaço de culto ao consumo, com a permissão daqueles que poderiam mostrar-lhes algo a mais, as figuras parentais. Mas, infelizmente, os próprios pais demonstram estar seduzidos pelo gozo oferecida pelo comércio.
Observo certa substituição do desejo pelo gozo, já que os objetos de consumo apresentam uma promessa de felicidade, como se pudéssemos comprar o que não pode ser comprado.
A questão desse texto surge em sala de aula, mas foi necessário ir muito além do aprendizado das áreas da pedagogia e até mesmo da psicologia para começar a entender quem é a criança de hoje. É interessante, nesse momento, salientar que os próprios profissionais, os chamados “especialistas” estão se colocando a disposição do mercado como objetos de consumo, tirando dos alunos que precisam de ajuda sua dimensão de sujeitos, colocando-os também no lugar de objeto, só que dessa vez, objetos de seus conhecimentos.
A pergunta “Quem é essa nova criança?” nasceu em sala de aula, mas, as possíveis respostas para essa questão só surgiram através do olhar diferenciado delineado pelas ideias da psicanálise. A questão nasce com a professora e seus desdobramentos surgem de um olhar que vai muito mais além.
Para mim, surge mais do que nunca a necessidade da criação de um espaço de interseção entre educação e psicanálise que permita entender a criança e o adolescente da contemporaneidade, que estão, fatalmente, submetidos às leis da sociedade de consumo. Mas, que não precisam, necessariamente, se submeter a toda a sua demanda. Não esqueçamos, afinal, que acima de tudo, o mercado deseja vender. Cabe a nós escolher o que realmente necessitamos e, principalmente, escolher que valores vamos passar aos nossos filhos.
Texto adaptado de anteprojeto de mestrado apresentado na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Bibliografia disponível a quem interessar.







domingo, 20 de novembro de 2011

Nossos ídolos


Nunca somos uma coisa só. E nunca nos encaixamos numa só descrição. Somos tantas coisas... Algumas podemos revelar. São nobres e publicáveis. Outras não. Revelam faces de nossa existência que não queremos que nossos filhos vejam. Ou nossa mãe. Pensando bem, há coisas sobre nós que fingimos não existir. Mas, deveríamos compartilhar algumas coisas. O que seria da música, da literatura, se seus criadores guardassem tanto segredo?
Não causarei nenhum frisson com essa revelação. É publicável. Fui uma adolescente cheia de ídolos. Que, por sinal, infelizmente, já estão ficando velhos. Um deles é Johnny Depp. E Keira Knightley, que, antes de ouvir essa atrocidade já não me despertava nenhuma simpatia, teve a pachorra de declarar durante as filmagens de Piratas do Caribe, que se sentiu constrangida de beijar um homem velho como ele. Velho? Johnny Depp? Ah, vai se catar! A mocinha entrou para a minha lista negra.  Mas, a verdade é que eles estão se tornando ídolos de outra geração...Assim como eu já virei a outra geração da família...
Bem, mas como já disse fui uma adolescente cheia de ídolos. E como nunca deixamos nada de lado em nossa vida, ainda sonho com alguns deles. Mas, nenhum jovenzinho. Bem, talvez um. Taylor Lautner. Ai, ai, ai... Mas, não dá. Muito jovem. Meu coração ainda bate mais forte com Tom Cruise, Mel Gibson... (Eu disse que estava ficando velha...).
Há algo nos amores platônicos que nos invade sem pedir. A Bela Adormecida dentro de nós ainda sonha com super-heróis, cavaleiros de capa e espada que poderiam trazer de volta a fantasia de salvação, aquela corrida rumo a lugar nenhum que nos tiraria desse mundo tão enfadonho e tão dolorosamente real...
 Assim como a criança o faz ao brincar, somos capazes de fantasiar. Freud disse que o contrário de brincar não é o que é sério, mas o que é real. Portanto, ao crescer, abandonamos o brincar, mas não a capacidade imaginativa que parece sobreviver aos infortúnios e dificuldades da vida. Como Freud diz no texto de 1908, na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra.
E toda a fantasia é a realização de um desejo, “uma correção da realidade insatisfatória”.( Freud, 1908, p. 137)
E qual é a realidade que é satisfatória?!? Então, sonhamos. Fantasiamos.
E hoje, tenho que confessar que o motivo de meus suspiros se chama Rock. The Rock. Ele mesmo. Dwayne Johnson. Sim, eu sei, filme quebra pau não tem muito a ver comigo. Mas, sinceramente, nunca me interessaram as pancadarias em que esteve envolvido. Nunca me interessei por esportes, muito menos diferentes modalidades de luta. Mas, há algo nesse grandalhão que me causa. Meu marido que me perdoe, fantasia pura.
Vocês já observaram os músculos do rapaz. Mas, já observaram o sorriso e olhos desse monumento? Aposto que não. A Disney já percebeu a empatia que causa esse olhar e não é a toa que o tornou seu herói, apresentando seus personagens nos filmes como presunçosos arrogantes que, no final das contas se tornam pais carinhosos, aqueles nos quais todos podem confiar. E então, confiamos. E fantasiamos mais um pouco.
Doces como bala de criança, olhos e sorriso do grandalhão revezam com o tamanho dos músculos, que só me interessam na medida em que causam o contraste perfeito: poesia e músculos, tudo o que uma mulher deseja?
O encanto do monumento nunca residiu na força ou na capacidade de quebrar a cara dos inimigos. Seu encanto sempre esteve no olhar que inacreditavelmente suave, logo nos convida para uma visita ao sorriso que, pela perfeição, nos captura, transformando sua atuação em pura sedução.
Duvidam? Então, da próxima vez em que assistirem a um de seus filmes, não reparem tanto nos músculos. Reparem nos olhos. E no sorriso.
Ah, você está espantado? Por quê? Você não fantasia?

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Palavras, apenas palavras...

Quando vivemos momentos de angústia, resta-nos algo simples: escrever. Palavras, apenas palavras. As mesmas que me acompanharam durante anos, alfabetizando. Aquelas mesmas que me fizeram apaixonar pela psicanálise, descobridora do valor que cada sílaba pronunciada imprimia no discurso das histéricas de Freud do início do século XX. Sempre acho que novas palavras vão me salvar daquelas mais velhas, que se pronunciam contra nós em momentos difíceis.
Mas, ao pensar demais e brincar demais com as palavras, travo a luta dos pequenos contra um gigante. Um épico silencioso que me faz caminhar, caminhar e muitas vezes encontrar um  parente próximo do vírus da depressão, destruidor qualquer tipo de proposta de felicidade. O curioso é que, para muitos, não passa de fraqueza. Bem, se fosse um vírus seria bem fácil de cuidar. Mas, trata-se de algo bem mais poderoso. O instinto de morte sentencia a existência com algo muito mais poderoso do que o corpo, mas que dele também se apodera: está no inconsciente, cujo acesso não se tem através de comprimidos, agulhas ou bisturis. Para localizá-lo e lutar com esse gigante, só precisamos de duas coisas: coragem e palavras. Talvez seja necessário colocar mais uma coisa: uma boa indicação de analista. Ah, e dinheiro! Bons profissionais custam o olho da cara.
Se há outros caminhos? Sim. Terapias alternativas, antidepressivos, massagens, dinheiro. Queria acreditar em algum desses. Mas, já passei por alguns e só acredito a essa altura da minha vida, no caminho mais longo. E mais difícil. Aquele através do qual você tem que rastejar e chorar no escuro: o caminho do inconsciente.
Eu juro que muitas vezes, gostaria de ser outra pessoa. Queria acreditar no que pregam as religiões, queria acreditar que nos atalhos dos florais reside a minha melhora. Mas, não acredito em nada disso. Parte disso é culpa do tal instinto de morte, desgraçado que habita na instância inconsciente. Filhote do instinto de morte nasceu um ceticismo absurdo emaranhado a uma ironia que me faz ter uma vontade terrível de gargalhar numa sessão espírita. Mas, não, nunca fiz isso. E antes que os espíritas fiquem com raiva de mim, lhe digo: não percam tempo. Afinal, a desgraça é minha. Aqueles seres que juram receber entidades através de seus corpos acreditam no que fazem. Pobre é de mim, que sofro nos calabouços de meus próprios castelos abandonados, que, há muito viraram ruínas. A sorte é deles, pois acreditam. O azar é meu, que não acredito em nada que traga a marca do sobrenatural. E sofro. Mais do que eles.

E agora?

Depois da demissão, sonhava muito com uma viagem. Eu queria estar em algum lugar da Itália naquele momento. Mais precisamente em Roma, perto do Coliseu.  A primeira vez que circundei aquele monumento, estava dentro de um ônibus. É inacreditável ver que aquela beleza realmente existe. Passamos a vida vendo monumentos através de fotografias e quando finalmente se apresentam à nossa frente, é como se sonhos viessem ao nosso encontro... Ver história se transformar em verdade é a melhor forma de ver sonhos tornarem-se realidade.
Aliás, se você quiser viver um sonho, escolha um lugar do mundo e junte dinheiro para ir até lá. Escolha algo que tem haver com sua alma, sua visão de mundo, sua história. E vá até lá. Se você for uma mulher, escolha um lugar, junte dinheiro e faça planos minuciosos para chegar. Sonhe com um belo país, uma bela cidade. Sonhe com eles. Não sonhe com príncipes encantados. Esses, definitivamente, não existem. O coliseu estará lá. Pode sonhar com ele, pois um dia poderá encontrá-lo. O príncipe? Desista.
Bem, eu não estava podendo mesmo ir para a Itália e tinha que procurar algo que me encantasse. Tinha que encontrar um Coliseu por aqui mesmo. Depois de tentar desesperadamente me colocar no lugar de vítima, não sustentei isso por muito tempo. Em trabalho de análise isso se torna impossível. Sim, ao invés de viajar, fui procurar análise. Ai, ai, eu e meus longos caminhos. E ainda por cima fui escolher a abordagem lacaniana. Trabalhando com o tempo lógico e intervenções que podem deixá-lo literalmente de calças arriadas em plena sessão, esse tipo de análise não é para qualquer um. Só se enfrenta um ringue barra pesada desses quem já sofreu muito e não aguenta mais abordagens que só massageiam o seu ego. Com as leituras de Freud e as aulas da pós-graduação, ficou mais fácil me colocar nessa escuridão que a entrada ao nosso inconsciente traz. Tornou-se mais fácil, mas, nunca, nunca foi fácil. Para falar a verdade, houve algumas sessões nas quais me sentia como uma criança. Aconteceu de, numa das sessões, a analista ter me pego tão de surpresa, que àquela altura já era temida por mim a frase “vamos ficar por aqui”. Não só me senti com as calças arriadas, mas tendo que sair assim, com a bunda de fora. Direto para a rua. Sem defesa, tonta, desorientada.
Bem, o manejo da análise dá ao dono daquele espaço o poder de decisão a respeito da sua capacidade de aguentar a bordoada que ele lhe dá. Aguentei, mas confesso que pensei dez vezes antes de voltar na sessão seguinte. O que ela disse?  “Por que você não assume de uma vez que essa demissão foi a melhor coisa que te aconteceu e que agora, você tem que seguir o caminho do seu desejo?” Fiquei muda durante cinco minutos e aí, ela disse a frase fatal. E saí, com a bunda de fora. Sem poder achar mais o lugar de vítima.
Ao trazer conteúdos inconscientes e impossíveis de se alcançar solitariamente, o trabalho analítico nos traz a oportunidade de responsabilização sobre tudo o que acontece em nossa vida. Por isso não é para qualquer um. Conheço alguns perversos que jamais voltariam para outra sessão depois de uma bordoada dessas. Mas, eu voltei. Afinal, ainda tinha que matar assombrações que ainda existiam na minha vida.

Dia de Ano Novo também é dia de demissão

 Um telefonema curto e seco de uma supervisora que chegou lá há três anos colocou um fim àquela história de dezoito anos. No dia trinta e um de dezembro daquele ano. Dezoito que se apagaram em um momento, por alguém que lá habita há três... Números que, mais do que dolorosos, te traduzem a um zero. Um zero à esquerda.
 Dia 31 de dezembro. Para eles, o dia limite para demissão de professores. Para mim, o dia de Ano Novo.  O sabor de um ano novo se iniciando me foi tirado. Fiquei triste naquela virada de ano. Não sei se os que costumam desempenhar o papel de carrasco empresarial têm noção do que acontece com alguém que é dispensado... Nem vou mencionar a perda financeira, perda essa grande o bastante para te fazer chorar... Falo da dor de perder uma referência, um endereço para o qual nos organizamos para chegar todos os dias e do qual saímos diariamente para voltarmos para casa, exaustos. Falo da dor da rejeição, do vazio que nos invade e grita: “E agora, para onde vou?”
Uma demissão nos deixa a questão que, primitiva, nos remota a mais tenra infância e nos perguntamos, perplexos: “O que fizemos de errado?” Quando conseguimos chegar à conclusão de que pode não ser pessoal, se é que isso serve de consolo, vemos que “cortes de custos” foram feitos. E aí, ao invés de um ser humano viramos apenas um número. Olha aí nossa existência reduzida, mais uma vez, a números.
A forma como somos dispensados diz muito sobre quem está nos dispensando. Assim como um amor, uma etapa de trabalho na vida de alguém não precisa ser concluída de uma forma desumana. Assim como um relacionamento pode ser terminado com amor, cordialidade e humanidade, penso que uma demissão pode ocorrer da mesma forma.
Mas, nem sempre é assim. Assim como grandes amores desembocam em mares de lágrimas, uma demissão pode te deixar o amargo da derrota, do questionamento de quem somos e a solidão da perda de um grupo, de uma identidade.
Mas, o humano tem a capacidade da resiliência. De renascer de todas as dores, colecionando um número grande de Fênix existenciais ao longo de sua trajetória. E renascemos. Melhores, mais fortes, mais humanos.
E se pudermos aprender que dispensar ao próximo todo o respeito que nos faltou, teremos não só sobrevivido ao bombardeio, mas teremos nos tornado mais gente.
Mas, e quem não nos tratou com respeito que julgávamos merecer? Bem, eis aí outra grande lição: não importa. Temos que engolir a dor, superar e ficar com o que é nosso. Dizem: “Fica um pouco de perfume nas mãos de quem dá flores”. Nesse caso, o perfume é meu.