Observar a criança de hoje me causa inquietação: suas atitudes, seu querer exacerbado, suas dificuldades ao se relacionar com o outro, sua dificuldade em atender às solicitações do mundo que a cerca; tudo na criança de hoje parece chamar a atenção.
Seus “excessos” encontram-se mais do que nunca superexpostos. Pais e mães declaram-se incompetentes para lidar com a “falta de limites” de seus filhos. Professores se veem às voltas com reclamações relacionadas ao desaparecimento de certa “educação”, que, supostamente deveria ficar a cargo da família e não da escola.
“Crianças-problema” tornaram-se frequentes nos consultórios. E o que não faltam são supostos “diagnósticos” que rotulam, mas não se mostram tão eficazes para o entendimento da situação. E a criança submete-se, mais do que nunca, aos saberes de “especialistas”: psicopedagogos, fonoaudiólogos, neurologistas, psiquiatras.
No episódio ocorrido em junho de 2011 (Revista Veja Rio, junho/2011) no Colégio São Bento, no Rio de Janeiro, um menino de seis anos foi publicamente humilhado e jogado ao chão, tornando-se vítima de violência física na hora do recreio. O agressor era um adolescente de quatorze anos. A própria instituição, famosa pelas punições exemplares, impôs-lhe uma pena de suspensão por um dia, considerada um desrespeito pela família. Por mais que desconheçamos o que realmente ocorreu naquele dia, a escola demostrou sinais claros de não saber lidar com essa nova modalidade de violência.
Em recente entrevista à Revista Veja Rio (1/06/2011), Thor Batista, filho do magnata Eike Batista, declara que nunca leu um livro inteiro e que malha três horas por dia. Alçado ao Olimpo social instantaneamente por conta da fortuna que herdará do pai, o rapaz não se envergonha em declarar que cultura não é o seu forte.
Os últimos conflitos do início do mês de agosto em Londres (Paperblog, agosto/2011) trazem uma ideia interessante acerca de como o consumismo da sociedade contemporânea pode contribuir para a construção subjetiva de seus sujeitos. Foi possível assistir a episódios de violência urbana e muitos confrontos entre a polícia e grupos de jovens. Eles incendiaram carros, edifícios e saquearam lojas em várias zonas da cidade. Estes grupos de jovens, muitos de caras tapadas e vestidos de negro são oriundos dos bairros de habitação social de Londres, locais economicamente menos privilegiados da cidade.
Ao comentar o episódio, numa entrevista ao jornal O Globo, Zygmunt Bauman, considerado o mais importante sociólogo vivo da atualidade, considera que os ataques não caracterizaram uma tentativa de rebeldia contra o consumismo, mas sim, “uma explosão de frustração acumulada” (Jornal O Globo, 2011). Para o sociólogo, trata-se do sonho dos menos favorecidos de consumir o que os mais ricos consomem.
A transformação da era industrial para a era da tecnologia trouxe o ritmo dos video clips, o acesso às redes sociais que garante a todos os sonhados quinze minutos de fama, o uso contínuo dos torpedos para a comunicação, a rapidez da mídia e o poder de compra com apenas “um clique”; toda essa parafernália parece traduzir uma nova forma de existência para os jovens.
E as crianças não estão distanciadas dessa nova promessa de gozo, uma vez que também a elas está garantida a inserção nessa nova realidade através dos aparelhos modernos. Não é incomum vermos crianças de sete anos ganharem de presente aparelhos moderníssimos, um ingresso ao “mundo adulto” frequentado pelos pais.
É comum observarmos na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, os chamados “novos ricos” usufruindo apenas de um tipo de lazer: comprar. Famílias inteiras frequentam shopping centers, lojas de decoração e espaços gourmet e usufruem de suas ofertas comprando e consumindo “desejos”.
Afinal, já se foi o tempo em que criança “não tinha querer”. Hoje ela quer. E quer muito. O problema é que, muitas vezes, não sabe o que quer. E aí começa a querer tudo. Filhote do capitalismo consumista, a criança nos dias de hoje revela-se como representante legítima desse tipo de organização social.
Diante dessa nova criança, podemos pensar que o querer tudo significa não conseguir perder nada, ou ainda, significa não saber o que se quer. E diante de uma impossibilidade de escolha, o tudo querer se perde nas infinitas opções que a vida contemporânea oferece.
A mudança de lugar da criança na família traz para os adultos uma nova figura que outrora desconsiderada em suas especificidades, hoje é coroada e ocupa um lugar nuclear e, mais do que nunca, se mostra mais insatisfeita, causando-nos enorme perplexidade. Escola e família parecem não saber o que fazer e os desejos onipotentes da infância parecem encontrar parceria perfeita com a necessidade de venda do sistema social ao qual estamos submetidos atualmente.
Anika Lemaire (1977) afirma que a criança sofre a sociedade, sua cultura, sua organização e sua linguagem. Ela não dispõe de alternativa a não ser submeter-se às suas leis ou reduzir-se a nada. Só nos tornamos sujeitos de nossas vidas se entrarmos no circuito social e se dele recebermos as regras.
Mas, as regras desse social parecem ter sofrido mudanças bastante significativas e, ao abordar a questão específica dos adolescentes, Luciana Coutinho (Revista Estilos da clínica, vol.14, no.27, São Paulo, dez/2009) levanta um ponto importante que compõe uma das ideias do presente estudo:
“Trata-se de uma ausência de ideais culturais ou da presença de um ideal cultural tirânico, que não dá lugar ao sujeito nem ao desejo, mas sim a um gozo mortífero que é prometido a todo tempo junto com a promessa de uma realização possível do ideal?” (Coutinho, 2009).
Do universo paralelo de Thor ao bulllying nas escolas, passando pelo equívoco das figuras parentais, pois também se submetem às regras do consumo, não é possível deixar de pensar que alguma coisa está errada. Qual será a noção de cidadania dos nossos jovens e como será o convívio social futuro dessa geração?
Como professora, penso que todos na área de educação deveriam, sob a luz da psicanálise, pensar na estruturação psíquica de seus pequenos. O olhar diferenciado dirigido ao cotidiano da sala de aula se estendeu aos encontros fortuitos nos shoppings centers onde me foi possível observar que o lazer das crianças se resumia a esse espaço de culto ao consumo, com a permissão daqueles que poderiam mostrar-lhes algo a mais, as figuras parentais. Mas, infelizmente, os próprios pais demonstram estar seduzidos pelo gozo oferecida pelo comércio.
Observo certa substituição do desejo pelo gozo, já que os objetos de consumo apresentam uma promessa de felicidade, como se pudéssemos comprar o que não pode ser comprado.
A questão desse texto surge em sala de aula, mas foi necessário ir muito além do aprendizado das áreas da pedagogia e até mesmo da psicologia para começar a entender quem é a criança de hoje. É interessante, nesse momento, salientar que os próprios profissionais, os chamados “especialistas” estão se colocando a disposição do mercado como objetos de consumo, tirando dos alunos que precisam de ajuda sua dimensão de sujeitos, colocando-os também no lugar de objeto, só que dessa vez, objetos de seus conhecimentos.
A pergunta “Quem é essa nova criança?” nasceu em sala de aula, mas, as possíveis respostas para essa questão só surgiram através do olhar diferenciado delineado pelas ideias da psicanálise. A questão nasce com a professora e seus desdobramentos surgem de um olhar que vai muito mais além.
Para mim, surge mais do que nunca a necessidade da criação de um espaço de interseção entre educação e psicanálise que permita entender a criança e o adolescente da contemporaneidade, que estão, fatalmente, submetidos às leis da sociedade de consumo. Mas, que não precisam, necessariamente, se submeter a toda a sua demanda. Não esqueçamos, afinal, que acima de tudo, o mercado deseja vender. Cabe a nós escolher o que realmente necessitamos e, principalmente, escolher que valores vamos passar aos nossos filhos.
Texto adaptado de anteprojeto de mestrado apresentado na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Bibliografia disponível a quem interessar.